O surrealismo é uma atitude revolucionária diante do ordinário cotidiano, mais do que um curioso movimento artístico a ser estudado, uma convocação para que se ative o instinto inconsciente e se desligue os impulsos racionais, em suma, um instrumento crítico sociopolítico transformador altamente perigoso nas mãos certas.

Luis Buñuel, até então um dedicado cronista de cinema para a Gazeta Literária de Ernesto Giménez Caballero, fascinado pelo viés poético daquela ferramenta, foi aplaudido pela burguesia francesa por sua implacável estreia como cineasta em “Um Cão Andaluz”, em 1929, uma colagem ousada de imagens impactantes sem qualquer elo lógico, a resposta agressiva de um jovem desencantado com o materialismo deturpado dessa mesma classe social que, ignorando o reflexo doentio no espelho iluminado pela lanterna mágica da arte, incorporou rapidamente o curta em suas longas e vazias conversas enaltecendo o próprio umbigo.

Com a ajuda dos colegas de elegante rebeldia, o pintor Salvador Dalí e, como fonte de provocadora inspiração, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca, fortes amizades forjadas nas salas esfumaçadas da Residência de Estudantes de Madri, o rapaz havia assinado uma declaração corajosa de caráter que praticamente incitava o revide, um panorama trepidante que obviamente não foi amenizado com a realização de “A Idade do Ouro”, no ano seguinte, um proposital insulto direcionado ao hipócrita sistema religioso, seu berço enquanto estudante na adolescência, com direito a uma sequência final que traçava uma espécie de paralelo visual entre as orgias escritas por Marquês de Sade e a figura tradicionalmente identificável como sendo Jesus Cristo, simbolizando a supressão histórica da representabilidade do feminino pela instituição.

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Ao expor suas chagas psicológicas em seu ataque às práticas da igreja católica ele escutou o clamor de ódio dos intransigentes escandalizados, teve seu filme banido e seu nome difamado, na tentativa de que sua voz fosse devidamente silenciada pela eternidade, tal qual Giordano Bruno, Galileu e tantos outros livres pensadores de diversas áreas. Em 1932, após um frustrante exílio criativo de seis meses nos Estados Unidos, com todas as despesas pagas pelos executivos da Metro-Goldwyn-Mayer, onde percebeu que o modo de produção da indústria norte-americana favorecia um convencionalismo preguiçoso que não o interessava, Buñuel decidiu voltar para a Espanha, financeiramente quebrado, em um momento especialmente complicado para a nação.

Após sete anos da ditadura do general Miguel Primo de Rivera, substituída conturbadamente, em 1931, por um segundo governo republicano com promessas de profundas mudanças sociais, a nação passava por um momento de atraso em todos os setores, com cerca de trinta por cento da população em estado de analfabetismo. O desemprego atingia níveis vergonhosos, a degradação lancinante destruía o espírito, enquanto a fome fustigava impiedosamente o corpo. A comarca de Las Hurdes era a representação mais evidente dessa realidade deplorável dominada pela ignorância, logo, terreno fértil para o misticismo. O local chegou a ser retratado em artigos jornalísticos do início do século vinte como sendo habitado por primitivas criaturas sub-humanas com aspecto de lobo.

Nesse contexto Buñuel encontrou a matéria-prima para seu terceiro trabalho, o excelente documentário “Terra sem Pão” (Las Hurdes, tierra sin pan), de 1933, realizado com o apoio financeiro do revolucionário anarquista Ramón Acín, pintor e jornalista, que havia prometido ao amigo cineasta que patrocinaria integralmente um filme seu caso ganhasse o prêmio máximo na loteria. Como nada é por acaso, a sorte sorriu para os dois. Numa análise mais atenciosa, fica latente que o investimento era de profundo interesse do grupo anarquista, revelar ao mundo pela ótica cinematográfica de um diretor que já havia comprovado ter coragem para enfrentar a batalha, as reais condições lastimáveis do povo rural, com o interesse óbvio de provocar repulsa e revolta nos espectadores.

Toda a equipe era formada por militantes da causa, inclusive profissionais que já haviam sido presos na tentativa de documentar aquilo que os dignitários da nação não desejavam que se tornasse público. Nesse intuito, a estratégia mais eficiente é que a mensagem fosse passada de forma objetiva, sucinta, potencializando o choque, uma vocação natural que se mostrou parte intrínseca do repertório de Buñuel desde o corte do olho com navalha, o “cartão de apresentação” mais corajoso da história do cinema.

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É sensacional a forma como o filme sutilmente trabalha o tema com admirada reverência, elemento perceptível até mesmo na trilha sonora, mostrando os habitantes do local como valentes símbolos de resistência, ao invés do viés de coitadismo que compreensivelmente poderia ter sido utilizado. Em um dos momentos mais impactantes, o narrador revela que o professor da região entrega os pães para as crianças, pedindo para que elas comam na sua presença, por medo de que, em suas casas, o alimento seja roubado pelos pais.

As famílias consideradas privilegiadas eram aquelas que tinham um porco ao longo de um ano, refeição que durava cerca de três dias. Carne de cabra era rara, apenas quando alguma perdia o equilíbrio nas ladeiras íngremes e era encontrada morta. Infecções causadas por falta de higiene no tratamento de picadas de cobra, ou o bócio que atinge crianças e adultos, parece não haver escapatória para esses bravos desamparados. A morte é o único evento que perturba a apatia miserável, corpos sendo carregados por longas distâncias para serem enterrados nos poucos cemitérios.

Já próximo do desfecho, entramos em contato com anões selvagens e os retardados frutos das frequentes relações sexuais incestuosas, a câmera registra com a clara intenção de explorar o medo do desconhecido, como se utilizasse o misticismo inerente à história do local como fonte narrativa. Mas nada disso é mais triste do que o relato de uma espécie de indústria que premiava a parentalidade irresponsável. Mulheres pobres que faziam dois longos dias de caminhada até a Assistência Pública e pegavam crianças abandonadas, mantendo-as em casa apenas como forma de garantir uma pensão mensal de quinze pesetas, um valor que sustentava essas famílias.

O governo vetou a exibição do filme alegando que manchava a imagem do país e atentava contra o orgulho do povo espanhol, acusando o golpe crítico certeiro desferido pelo cineasta, atitude que quebrou definitivamente a ilusão de Buñuel com relação à república. Apenas quando a Frente Popular centro-esquerdista retomou o poder, em 1936, o documentário receberia uma licença para exibição pública, somente para ser retirado do radar novamente com o início da Guerra Civil.

Outro amor de formação, o surrealismo, também começava a ruir em seu idealismo, descontente com o crescente apreço de seus colegas de filosofia pela fama, e, por conseguinte, pela busca da satisfação de outrem, atitude que ia contra os princípios fundamentais do movimento. Em 1934 ele casa com Jeanne Rucar, a mulher que ficaria ao seu lado por cinquenta anos, e começa a trabalhar nos estúdios de dublagem da Warner em Madri.

No ano seguinte, recrutado como produtor executivo pela Filmófono, companhia espanhola pioneira na tecnologia do som, defensora de um cinema popular de gêneros e mercadologicamente competitivo, o jovem se viu novamente confrontado por suas crenças e com medo de ferir sua reputação. Pela primeira vez ele teria controle artístico, como produtor, editor e diretor, mas estava confinado em um sistema regido por um baixíssimo critério. Com dor na consciência, ele aceitou a proposta impondo uma única condição: o total anonimato.

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Esta condição radical acabou favorecendo o empreendimento, já que os censores, alertas para toda e qualquer movimentação artística do perigoso Buñuel, não se incomodavam com o tal fulano desconhecido que assinava os projetos. A experiência durou cerca de intensos dois anos, período em que ele teve oportunidade de amadurecer profissionalmente, aprendendo na prática a importância de se alcançar o elegante equilíbrio entre os desejos autorais e a demanda de mercado, o caminho que seguiu em seus projetos futuros, a única maneira de uma nação construir uma indústria forte de cinema. Sem essa passagem pela Filmófono, provavelmente ele não teria realizado suas várias obras-primas posteriores e seu nome seria hoje reconhecido apenas como curiosidade exótica pelos estudantes mais dedicados.

O mais importante ao analisar a gênese artística de Luis Buñuel é constatar que em apenas três produções, juntas elas não somavam sequer duas horas, um rapaz nascido na aldeia de Calanda foi capaz de estabelecer mundialmente o seu nome como algo a ser temido pelos conformistas ideológicos, uma personalidade tão íntegra que não tombaria ao sabor do vento.

Em um meio que prima pela insegurança, pela necessidade mercadológica da obra ser validada pela quantidade de ingressos comprados, ele era uma valiosa peça de resistência.

* Texto escrito para o catálogo da “Mostra Luis Buñuel – Vida e Obra”, ocorrida na Caixa Cultural Rio de Janeiro, dos dias 23 de agosto a 04 de setembro (2016).



Viva você também este sonho...

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