Façamos a análise do início, julgar isolando apenas o resultado neste caso seria uma tremenda injustiça. O projeto foi pensado para competir nas bilheterias em 2015 com o segundo filme dos Vingadores, o roteiro de Chris Terrio foi finalizado em julho do mesmo ano, alguns membros do elenco começaram a aquecer as turbinas de divulgação, postando fotos e estimulando a imaginação dos fãs. A pré-produção oficialmente começou em janeiro de 2016. Willem Dafoe, por exemplo, estava escalado para um papel relacionado ao universo de Aquaman, o escopo seria grandioso como em “Batman Vs. Superman”, com várias subtramas e generoso tempo dedicado à cada herói, mas com o diferencial de que seria dividido em duas partes. Muitos jovens se empolgaram com o primeiro pôster divulgado, mostrando pela primeira vez o visual de Cyborg e Flash. Pouco tempo depois, os problemas começaram.

O conceito realista sombrio que o diretor Zack Snyder estabeleceu em “O Homem de Aço”, de 2013, e aprofundou na sequência, já estava se tornando alvo de deboche na internet, a garotada estava sensorialmente acostumada com as produções infanto-juvenis da Marvel, tramas sem peso dramático, vilões sem senso real de ameaça, sequências de ação diluídas e palatáveis até para crianças de cinco anos. A fórmula da concorrência seguia lucrando alto, os tempos mudaram radicalmente, logo, o primeiro passo foi garantir que “Esquadrão Suicida” e “Mulher-Maravilha” emulassem aquele espírito descontraído, despretensioso. O redirecionamento criativo era arriscado, os produtores precisavam manter a ideia de que o universo criado estava sendo respeitado. “Esquadrão Suicida”, uma péssima colcha de retalhos, reeditado diversas vezes, fracasso retumbante. O trailer vendia A, o filme entregava C. A pressão estava nos ombros da heroína mais famosa dos quadrinhos. Gal Gadot, com carisma irresistível, fez o público esquecer os problemas no fraco terceiro ato de “Mulher-Maravilha”, o filme exalava leveza e alegria, por conseguinte, sucesso nas bilheterias. Alerta vermelho na produção de “Liga da Justiça”, algo precisava ser feito, havia luz no fim do túnel.

Foi quando os fãs começaram a receber notícias de cortes, rumores apontavam que a duração total do filme seria de três horas, aquilo que havia sido pensado em duas partes estava sendo retrabalhado na base do “tudo ou nada”, não há lógica em correr risco duas vezes. Algumas subtramas seriam drasticamente reduzidas, outras cortadas completamente, o personagem de Willem Dafoe deixou de existir, apesar de constar nas linhas de brinquedos que já estavam sendo trabalhadas. Os produtores estavam muito preocupados e com razão, caos e insegurança não ajudam a vender ingressos. O sonho de todo fã havia se tornado um pesadelo. Já na etapa final, um baque devastador, a filha adolescente do diretor comete suicídio. Ele se afasta da produção e Joss Whedon, responsável pelo maior sucesso da concorrência, é convocado às pressas para finalizar a obra. Ao constatar que a situação não era mercadologicamente simpática, ele aceita a responsabilidade de reescrever o material, acatando o pedido dos executivos angustiados para que a duração total não ultrapassasse o limite de duas horas. Henry Cavill, que já estava filmando outro projeto, foi chamado para refilmagens importantes. Ao contrário dos outros colegas, ele trazia um considerável problema, o bigode que contratualmente não poderia ser cortado. O pessoal do marketing estava desesperado, então o jeito era fazer piadas com o fato, o ator ajudou a vender a ideia do Superman bigodudo nas redes sociais, uma tentativa desajeitada de acalmar os fãs. Os pelos seriam digitalmente retirados, logo no rosto do líder da equipe, o personagem mais importante da história dos quadrinhos. O papo entre os críticos agora se resumia a conjecturar a dimensão do estrago que o filme causaria. Os pessimistas apostavam que seria uma bomba mais poderosa que “Esquadrão Suicida”, os otimistas torciam para que não fosse cancelado, em suma, a situação não era boa.

Os novos trailers mostravam correção de cores, piadas e sorrisos, o esforço conduzia para o senso de diversão inofensiva da Marvel. Semanas antes, “Thor: Ragnarok” estreava exibindo humor tolo, exagerando em todos os aspectos, o desgaste da fórmula que transformou o espetacular dos primeiros esforços em previsível bobeira direcionada para crianças e adultos infantilizados. Será que “Liga da Justiça” havia optado por este caminho?

devotudoaocinema.com.br - O problemático "Liga da Justiça", de Zack Snyder

Liga da Justiça (Justice League – 2017)

(O texto irá abordar pontos da trama, então eu recomendo que seja lido após a sessão)

Já na trilha sonora de Danny Elfman, o fã percebe que o redirecionamento do projeto visa também satisfazer os seus sonhos. Algo que, em teoria, não faz sentido cinematograficamente, como a utilização dos temas clássicos de Superman (John Williams) e Batman (Elfman), representando a força destes personagens na cultura popular mundial, prova que, no frigir dos ovos, a Warner abandonou qualquer trava criativa, “Liga da Justiça” é, acima de tudo, um presente carinhoso para o público que se manteve fiel apesar de todos os problemas. Estabelecer universo compartilhado já não importa tanto, o roteiro precisa funcionar sem muletas. A decisão se mostra correta, o elenco transborda carisma, as refilmagens conseguiram simplificar a receita e dar um senso de unidade que
celebra valores grandiosos como a necessidade de manter sempre viva a esperança,
subjugando o medo, e, na interação singela entre a criança e a flor alienígena que brota após o conflito, a beleza de saber que a evolução consiste em aprender a se adaptar às mudanças sem preconceito.

Se a computação gráfica que retirou o bigode de Cavill em algumas cenas se mostra mais aparente, o roteiro compensa entregando pela primeira vez no cinema desde Christopher Reeve a interpretação correta do herói, o farol de esperança que inspira os seres
humanos. A paleta escura e dessaturada morreu no filme anterior, Superman agora cruza o céu com seu traje em vibrantes vermelho e azul, a testa franzida dá lugar ao sorriso franco e seguro, o macambúzio filho de Krypton agora exibe até senso de humor. O Batman de Ben Affleck, por outro lado, abandona a amargura característica e defende uma postura mais simpática, afastando-se um pouco do material de origem. No filme anterior ele sofria o luto da morte de Robin, envelhecido e impaciente, violou sua diretriz de nunca matar. Após a morte do Superman, sentindo novamente o peso da culpa, ele se modificou, evoluiu, logo, a leveza dele em “Liga da Justiça” soa natural e coerente ao tom da obra. O humor, diferente do que a concorrência entrega, não é tolo, boboca, forçado. O Flash (Ezra Miller) é impecável, trabalhado no diapasão cômico com um carisma arrebatador, ele funciona como um avatar do leitor de quadrinhos que se vê inserido naquele mundo fantástico. A Mulher-Maravilha (Gal Gadot) segue sendo uma força da natureza, transmitindo no olhar doçura, generosidade e compaixão, a grande figura de liderança da equipe. Aquaman (Jason Momoa) é a grande surpresa, o roteiro não tenta reinventar a roda, o personagem é raso e irrelevante nos quadrinhos, logo, sem revelar muito, afirmo que a personalidade exótica de Momoa é responsável pela melhor representação do herói em qualquer mídia. Cyborg (Ray Fisher) é uma figura atormentada que aprende a trabalhar em equipe, ao mesmo tempo em que está descobrindo poderes novos, elemento potencializado pela dignidade que o ator injeta nos breves momentos em que luta contra o compreensível desejo de sumir na multidão. O grupo funciona nas batalhas e nas sequências descontraídas, você fica ansioso ao final para ver novas aventuras, mérito precioso que não pode ser esquecido. E vale ressaltar que as duas cenas pós-créditos são excelentes.

O vilão Lobo da Estepe (Ciarán Hinds), com seu exército de parademônios, invade a Terra e se alimenta do medo que surgiu após a morte do Superman, espertamente representado nos créditos iniciais ao som da maravilhosa “Everybody Knows”, do saudoso Leonard Cohen, cantada por Sigrid, que realça o tom épico da letra apocalíptica. As motivações do personagem são bem trabalhadas, sem fugir da óbvia unidimensionalidade, ele serve apenas ao propósito de firmar oposição à equipe, não há intenção de agregar camadas, o ritmo ágil favorece o roteiro ao evidenciar em traços fortes que seu poder é superior aos esforços combinados dos heróis. As sequências de ação são tecnicamente perfeitas, mas não são memoráveis, felizmente o que fica após a sessão é a camaradagem dos heróis e a força do Superman como símbolo, alguém capaz de mover a trama até mesmo enquanto está ausente.

“Liga da Justiça”, especialmente considerando todo o processo de sua produção, merece aplausos de pé.



Viva você também este sonho...

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