Críticas

Tesouros da Sétima Arte – “A Bruxa Inocente”, de Heinosuke Gosho

A Bruxa Inocente (Osorezan no Onna – 1965)

O diretor japonês Heinosuke Gosho nunca atravessou a fronteira como seus celebrados colegas Kurosawa, Ozu, Mizoguchi e Miyazaki, ente outros, apesar de sua carreira ser tão consistente quanto a de todos os citados, com especial dedicação em procurar a beleza por trás da tristeza de personagens comuns, elemento que garante aos seus melhores filmes uma aura de melancolia fascinante. E, vale destacar, nesta linda obra produzida pelo estúdio Shochiku, a sua linguagem sobreviveu impecavelmente ao árduo teste do tempo.

A trama inicia no monte Osore (tradução: medo), a entrada para o inferno, com os passos trepidantes de uma idosa que busca uma xamã cega que a ajude a entrar em contato com sua falecida filha. Em flashback, conhecemos Ayako (Jitsuko Yoshimura), ingênua garota do interior, que acaba se vendo obrigada a trabalhar vendendo seu corpo no final da década de trinta, às vésperas da guerra, sacrificando a sua própria vida para poder alimentar os seus pais.

Ao chegar no bordel, atrai a atenção de um repulsivo homem mais velho que paga pela exclusividade de seus serviços. A câmera na fotografia claustrofóbica de Shinomura Sôzaburô reforça o confinamento das prostitutas, filmando-as frequentemente através de vigas de madeira verticais que simulam as grades de uma prisão.

Sem revelar muito sobre o desenvolvimento do roteiro de Hideo Horie, ela acabará envolvida indiretamente em três mortes de clientes unidos por um laço familiar, algo que despertará na sociedade hipócrita, machista e ignorante da época a fama de que ela está possuída por demônios.

O intenso terceiro ato exibe corajosa crítica à religião organizada, evidenciando os danos psicológicos que os dogmas e as mentiras ritualísticas causaram na protagonista, que, acreditando ser culpada por tudo o que aconteceu, aceita atravessar a implacável e estúpida cerimônia de expurgo sobrenatural. Ayako, pura flor de gentileza que foi incapaz de respeitar o rígido código de nunca entregar seu coração no trabalho, padece humilhada diante de uma corja de víboras sacerdotais arrogantes, iludidas e supersticiosas.

Analisado hoje, impressiona como seu amargo discurso sobre repressão sexual alicerçada nas crenças religiosas infelizmente segue relevante, incrivelmente atual. A antinaturalidade forja o conceito do pecado, revestido pelo manto subjetivo da moralidade, subjugando as mentes fracas ao lucrativo controle comportamental.

A mãe, ao final, abandonada por tudo e todos, refaz seu caminho sem respostas. Quando a lucidez é negada, não há redenção. Bravo, Gosho!

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

Recent Posts

Os 10 MELHORES filmes do diretor ROB REINER

Os filmes do diretor Rob Reiner, falecido aos 78 anos, marcaram a vida da garotada…

4 horas ago

Textos sobre filmes de YASUJIRO OZU

Na intenção de facilitar o garimpo cultural do público do "Devo Tudo ao Cinema", decidi…

3 dias ago

Textos sobre filmes com JEAN-LOUIS TRINTIGNANT

Na intenção de facilitar o garimpo cultural do público do "Devo Tudo ao Cinema", decidi…

4 dias ago

PÉROLAS que ACABAM de entrar na NETFLIX

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

5 dias ago

Textos sobre filmes com KIRK DOUGLAS

Na intenção de facilitar o garimpo cultural do público do "Devo Tudo ao Cinema", decidi…

6 dias ago

ÓTIMOS filmes que ACABAM de entrar na NETFLIX

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

2 semanas ago