O Homem Duplicado (Enemy – 2013)

É impossível analisar profundamente a obra sem revelar segredos, mas tentarei abordar os aspectos comuns ao livro original e sua adaptação, a fidelidade à mensagem de José Saramago e a inteligência do roteirista Javier Gullón, que utilizou a base crítica do escritor português e a reforçou com personalidade, utilizando aquilo que é exclusivo da linguagem cinematográfica, criando uma simbologia que é sutilmente perceptível no decorrer da trama.

O livro é rico no senso de humor peculiar do autor, com as constantes intervenções do senso comum a questionar os atos do protagonista, mas o filme escolhe deixar totalmente de lado esse viés, reduzindo a jornada literária hercúlea do professor deprimido em busca de sua duplicata – que descobre existir ao assistir despretensiosamente um filme – ao estritamente necessário para o entendimento do espectador que não leu a obra.

A duração é curta, os eventos são rápidos e as motivações dos personagens são estabelecidas de forma sucinta, mas a simbologia aracnídea evidenciada desde a primeira cena ajuda a fazer compreender que estamos vendo uma ágil fábula urbana, não um profundo estudo psicológico como nas páginas de Saramago.

O roteiro capta sutis analogias do autor ao totalitarismo e, como em toda fábula, as potencializa generosamente. Conhecemos o professor (Jake Gyllenhaal) exatamente enquanto ele tentava ensinar aos seus alunos sobre a obsessão do Estado em controlar o povo, entregando “pão e circo” e mantendo-os ignorantes, pois é mais fácil manipular um coletivo com preguiça de pensar. E, mais fácil ainda, quando se retira a individualidade da equação. Como educador, ele é o principal alvo daqueles que tencionam o regime ditatorial, já que é o responsável por incitar nos jovens o estímulo ao questionamento. Quando não são transformados em militantes úteis no processo de desinformação dos alunos, praticamente zumbis de olhar vazio, eles se tornam inúteis à causa.

Tomadas rápidas mostram o que parece ser uma teia de aranha sobre a cidade, ilusão criada pelo ângulo da câmera ao focar simples cabos elétricos. E essa é apenas uma das várias exposições simbólicas que são mostradas, algumas sutis e outras óbvias, mas que não serão aqui reveladas por respeito à experiência do leitor.

Em outro momento, uma rápida tomada aérea transforma vários prédios em um imenso labirinto, reforçando a batalha diária dos indivíduos que se espremem pelos “corredores”, muitas vezes sem encontrar sentido para tal esforço. Uma “teia” que anestesia enquanto sufoca gradativamente sua vítima.

O totalitarismo, nas palavras do próprio professor, “tolhe todas as formas de expressão individual”, exatamente o que ocorre com ele quando descobre surpreso que não é mais um indivíduo, que existe uma duplicata exata sua, uma perfeita antítese, vivendo uma vida de aventuras, um artista especialista em representar outros papéis. No livro, esse aspecto é aprofundado, inserindo no professor a vergonha pelo nome de batismo, Tertuliano, fazendo questão de chamá-lo sempre pelo nome completo, ocasionando situações que eu gostaria que tivessem sido aproveitadas pelo roteiro.

O que se mantém é a diferenciação dos personagens pela aliança no dedo do ator. O diretor Leos Carax, em seu excelente “Holy Motors”, abordou o tema com maior coragem e criatividade, mas com uma proposta bastante diferente. O foco de Denis Villeneuve é na parábola sociológica macro, não nos conflitos existenciais do micro. Uma das adições que considerei mais válida foi na construção narrativa da personagem da noiva do ator (Sarah Gadon), que agora tem participação ativa, alterando para melhor sua contraparte literária, tornando suas ações mais complexas e interessantes, especialmente no terceiro ato.

O resultado é, como nas melhores adaptações, uma obra complementar que respeita o material original, compreendendo perfeitamente sua mensagem, mas dando um passo além. Saramago, que, assim como Orwell, conhecia as engrenagens dos regimes totalitários, ficaria orgulhoso.



Viva você também este sonho...

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