O Despertar da Besta (1970)

O filme já começa com uma cartela de agradecimentos, ao som de “Ave Maria”, que é implacavelmente interrompida pelo som de um grito de pavor. Só este elemento já seria suficiente argumento para o regime militar querer proibir a obra. Os oficiais não impediram apenas a exibição do filme nas salas de cinema, eles queimaram as cópias. Recuperado na década de 80, segue sem lançamento comercial. Com um roteiro primoroso de Rubens F. Lucchetti, baseado em argumento de José Mojica Marins, pleno em metalinguagem, que, no contexto da época, ousou um discurso sobre o comportamento humano que ainda hoje se mostra corajoso.

“Você descreve as proezas absurdas de um anormal como se fossem páginas poéticas de um romance de amor.”

Em um debate sensacionalista, jornalistas insinuam que a violência urbana, com foco nos casos de perversão e sadismo mostrados episodicamente durante todo o primeiro ato, é uma condição estimulada pela arte, pelo escapismo de filmes de terror. Basta analisar argumentos tolos atuais, como os apresentadores mundo cão que atacam os videogames como responsáveis por crimes na vida real, para percebermos que pouca coisa mudou, a irresponsabilidade de pseudointelectuais e a psicologia de botequim continuam a dominar o entretenimento televisivo. Ao inserir até uma marchinha de Carnaval do Zé do Caixão, a trama reforça a figura do personagem como um representante do inconsciente coletivo popular.

Como repete a música-tema: “Guerra”, a real causa do problema é o medo, reconhecendo a existência de loucos, que já não eram poucos na época, que podem a qualquer momento destruir o mundo motivados pela besta da guerra, uma besta que é despertada pelo próprio homem. Como prova o experimento final, o psicotrópico não era o responsável pelas alucinações das cobaias, mas sim, a índole distorcida de cada um deles, tirando, na ignorância do efeito placebo, o peso da culpa pelo sadismo revelado. O roteiro finaliza de forma brilhante, mostrando duas jovens sendo abordadas na rua por estranhos em um carro, obviamente mal-intencionados, enquanto Mojica vê tudo à distância. Uma delas segue com os rapazes, a outra fica na calçada. O diretor sorri para o público, a confirmação metafórica de que tudo se resume a uma questão de opção.

Em pleno regime militar, o filme defende que o psicotrópico intensifica apenas aquilo que já existe na índole daquele que o utiliza. O nosso cinema nacional atual, perto desta coragem e segurança na execução, ainda é um bebê desajeitado tentando os primeiros passos.

“O meu mundo é estranho, mas digno de todos que queiram aceitar. E nunca corrupto como querem fazê-lo. Pois é composto, meu amigo, de pessoas estranhas, mas não mais estranhas que você!”



Viva você também este sonho...

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