Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet obscur objet du désir – 1977)

“Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mundos que se formam sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros.” (Gilles Deleuze)

“Se você tiver o que deseja, deixará de me amar.” (Conchita)

O livro “La femme et le pantin”, de Pierre Louÿs, já havia sido adaptado para o cinema em “Mulher Satânica”, de Josef von Sternberg, e “A Mulher e o Fantoche”, de Julien Duvivier, mas somente pelas mãos de Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière conseguiu ser plenamente compreendido, indo além da história simplória da mulher que pisoteia os sentimentos de seu admirador até receber o troco na mesma moeda.

“Esse Obscuro Objeto do Desejo” amplia esta superficial camada interpretativa para uma reflexão profunda sobre questões fundamentais na obra do espanhol, como a religião e as obsessões que escravizam o ser humano a padrões encorajados por rituais tolos e ideologicamente frágeis, em suma, ele aponta o dedo para o fato de que somos seres desprovidos de liberdade e parecemos gostar/precisar desta condição.

Ao optar por utilizar duas atrizes no papel de Conchita, toque surrealista brilhante, o filme perturba sensorialmente o espectador, conscientemente trabalhando contra o elemento importante da identificação e do investimento emocional na relação do casal. O personagem de Fernando Rey está apaixonado por aquela jovem, mas o roteiro não está interessado em fazer com que o público compartilhe este sentimento, o que conduziria à empatia imediata, mas sim, que ele analise o comportamento de Mathieu como se ele fosse um animal exótico em um zoológico.

Com a utilização dos dois rostos, Carole Bouquet e Ángela Molina, sem obedecer a qualquer impulso de racionalidade, a trama bloqueia a empatia e facilita a objetificação da mulher, além de tornar mais perceptíveis os traços de personalidade antagônicos que compõem a complexa natureza humana. Bouquet, fria, beleza etérea, Molina, calor, paixão representada pela sensualidade da dança flamenca. Conchita se recusa a satisfazer os desejos de seu admirador, parece se divertir gradativamente elevando o grau de intimidade entre os dois.

De início, conduzidos pela mão dele em sua narrativa a bordo do trem, ignorando os acontecimentos passados, chocados pelo balde d’água que ele despeja na mulher, somos levados a ver ele como uma vítima, todos os elementos nos flashbacks, inclusive os personagens secundários, são ativados pelo ponto de vista de alguém que se coloca como pobre coitado.

Ao final, os argumentos não são suficientes para que continuemos vendo a história de forma tão unidimensional, não há vítimas, apenas dois adultos psicologicamente infantilizados, reduzidos aos seus instintos mais primitivos, desajeitadamente buscando entender suas próprias necessidades. Perceba como tudo se resume a infantis baldes d’água como forma de ataque e revide, complementados até por um breve momento em que a jovem encurralada no trem estira a língua como zombeteira resposta. Ele tenta comprar a entrega romântica dela de todas as formas, enquanto a jovem se utiliza desta generosidade desesperada para conseguir melhorar financeiramente de vida.

Buñuel insere durante toda a projeção reportagens radiofônicas e televisivas sobre atentados terroristas cometidos pelo “exército revolucionário do bebê Jesus”, propondo uma analogia entre a violência política (provocação por desejo de conquistar e manter o poder) e amorosa (o ritual cristão da pureza até o casamento como violenta agressão antinatural alicerçada pelo medo), optando inteligentemente por encerrar com uma explosão de bomba que bloqueia nossa visão do casal.

Nós, o público, fomos atingidos.



Viva você também este sonho...

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