• TEXTO ESCRITO E PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 27 DE MAIO DE 2013, INTITULADO “AULA FRANCESA”, NA MINHA EXTINTA COLUNA SEMANAL NO SITE DA JORNALISTA ANNA RAMALHO.

A crítica que escrevi sobre o filme francês “Intocáveis” (Les Intouchables – 2011), na época de sua estreia foi uma nota dissonante, pois encontrava vários defeitos naquele produto que estava fazendo enorme sucesso em vários países, batendo recordes de público, na Alemanha, Áustria e Itália, por exemplo. Há filmes que melhoram em revisões e outros que pioram já no dia posterior, quando sua mente vasculha além da manipulável primeira impressão.

Na primeira vez, respondi de acordo com todos, sendo manipulado pelo roteiro, dos diretores Olivier Nakache e Éric Toledano, e me divertindo bastante. As cenas de humor são rasgadas, num estilo mais vulgar do que é comumente usado na linguagem cinematográfica, especialmente as cenas em que a brincadeira é feita com a limitação física, enquanto que os poucos momentos dramáticos são sublinhados fortemente por clichês batidos. Mas se eu tivesse escrito a crítica exatamente após a sessão, provavelmente teria entrado naquele trem da alegria que parecia dominar os críticos internacionais. Fortuitamente, aguardei um dia.

Eu estudei a história real, de onde o filme foi baseado, além de puxar em minha memória emotiva as lembranças de outros projetos com temática similar. Quando pousei as mãos sobre o teclado, ainda que me recordasse com alegria de algumas cenas, o prazo de validade vencido da obra já começava a fazê-la cheirar mal em minha mente.

O projeto já começa errando na escalação de um elemento essencial: o ajudante Driss, vivido com carisma absurdo por Omar Sy. Na vida real, um árabe baixinho. Toda aquela sequência em que Driss arrebenta na pista de dança, ao som de “Earth, Wind and Fire”, foi inserida para reforçar a diferença entre um playboy branco que sempre teve tudo na vida e um negro ex-presidiário.

Hipocrisia ignorar o show de estereótipos utilizados na confecção da cena (da forma como foi escrita, não havia forma de não ser um negro demonstrando suas técnicas de dança ao almofadinha branco), um recorte mentiroso que nunca ocorreu na vida real do personagem. Mas este não é o maior defeito, pois é “inspirado em fatos”, não é um documentário. O que achei mais prejudicial foi como o roteiro evitava desesperadamente qualquer aproximação ao drama psicológico e físico do protagonista.

Afirmar que a timidez dele ao encontrar a mulher com quem se relacionava por cartas já solucionava o problema não é aceitável. Não querer enviar uma foto sua posterior ao acidente também não satisfaz. Bastava inserir naquele festival de gargalhadas uma sequência de cinco minutos em que o personagem quebrasse o molde da caricatura e nos fizesse crer que sua imobilidade não fosse apenas uma boa atuação. François Cluzet retrata o personagem com carisma, mas não soa crível, como faria, por exemplo, Daniel Day-Lewis ou Dustin Hoffman.

Tolice seria eu buscar comparar o filme com outro de ambições diferentes, como o excelente “O Escafandro e a Borboleta”, que lida com tema similar, mas que trabalha com outros estímulos. “Intocáveis” poderia se manter em sua ambição, mas com maior cuidado aos detalhes. Acompanhamos por repetidas vezes os personagens se divertindo com a utilização de psicotrópicos, mas apenas em um brevíssimo momento (quase imperceptível e, ainda assim, de efeito minimizado) vemos o ajudante tendo que lidar com a bolsa de colostomia do patrão.

Analisando pela ótica do roteiro, ser ajudante (sem experiência alguma) de um tetraplégico é o maior barato. Evitando correr o risco de um equilíbrio emocional, potencializando transformar o projeto em um feel good de apelo universal, especialmente o mercado norte-americano, exageraram na dose. O filme recente “As Sessões, também lidando com um protagonista com limitações físicas, conseguiu melhor equilíbrio e agradou o público. Então qual seria a razão que me motivou a intitular este texto como “Aula Francesa”?

Este imperfeito, mas muito eficiente, filme de baixo custo estreou sem alarde nos cinemas franceses em 2011. Em pouco tempo, devido ao boca a boca, tornou-se a maior bilheteria da história de sua nação, atraindo a atenção do mundo.

O seu roteiro é falho, como detalhei nos parágrafos anteriores, mas seu humor não é populista. Os diretores não trataram seus compatriotas como crianças em um jardim de infância. Construíram conscientemente um receptáculo de emoções que poderiam ser traduzidas para o senso de humor de diversas culturas. Exiba uma comédia da Globo Filmes em solo norte-americano ou francês e conte a quantidade de risadas. O desejo que inspirou a equipe foi unicamente a expansão de sua arte, não a satisfação de um plano populista governamental (leia-se “Empreguetes”, “Esquenta”…).

O diretor argentino Juan José Campanella, de “O Segredo de Seus Olhos”, também domina esta lição, mas por aqui ainda estamos na pré-escola, brincando de fazer cineminha. “Intocáveis” é uma aula francesa de como fazer uma comédia popular e que atraia a atenção do mundo.



Viva você também este sonho...

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