Críticas

“Entre Dois Fogos”, de Anthony Mann

Entre Dois Fogos (Raw Deal – 1948)

Joe Sullivan escapa da prisão e busca vingança contra o mafioso Rick Coyle, um sádico piromaníaco que encomendara o seu fim. 

Neste filme de Anthony Mann, que considero um dos mais importantes do gênero, um dos conceitos elementares do Noir é subvertido, inserindo duas personagens femininas com motivações complexas, vividas por Marsha Hunt e Claire Trevor. No lugar de uma femme fatale disposta a conduzir o protagonista até sua ruína, deixando sempre nas sombras a inocente apaixonada por ele, o roteiro evita os estereótipos ao entregar a melancólica narração da trama, normalmente defendida pelo trágico herói, nas mãos daquela que, no que se espera em projetos similares, simboliza sua derrocada.

As duas mulheres que disputam o amor do personagem, vivido por Dennis O’Keefe, são fortes e moralmente falhas, o que possibilita atitudes surpreendentes como a bravura de Ann (Hunt), a boa moça, defendendo o amado, ainda que acredite que ele deva se entregar às autoridades, sendo capaz também de confrontá-lo em uma discussão que evidencia a qualidade do texto de Leopold Atlas e John C. Higgins, quando ele a rotula como uma mimada privilegiada. Após ela sentir na pele o impulso violento, a jovem inicialmente condena sua atitude, mas acaba entendendo que o conceito de bom ou ruim é subjetivo, compreendendo finalmente a ambiguidade moral do amado.

Este tipo de arco narrativo não era comum no gênero, quase sempre limitado a uma visão de mundo simplista, ainda que esteticamente emoldurado em tons de cinza. E, num revés muito criativo, a ruína do herói é consequência de sua relação com a boa moça, não com a femme fatale, que, vale salientar, não possui outro interesse que não seja o amor que genuinamente sente por ele. A boa moça, que descobre a violência como conduta aceitável, acaba sendo a única corrompida na trama, algo que se espera sempre do herói.

Mann, com o auxílio da ótima fotografia de John Alton, consegue estabelecer visualmente esta dinâmica ao optar por mostrar os três quase sempre no mesmo quadro. Vale destacar também, como elemento que ajuda na imersão sensorial, o teremim que o compositor Paul Sawtell utiliza para pontuar as narrações, criando um clima ainda mais sombrio e enigmático, quase fantasmagórico, nestes momentos.

É incrível pensar que esta obra-prima seja tão pouco valorizada, considero uma das cinco melhores de todo o ciclo do gênero, nascida em sua melhor década.

* Você encontra o filme em DVD e, claro, garimpando na internet.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

Recent Posts

Crítica nostálgica da série “Duro na Queda” (1981-1986), com LEE MAJORS

Duro na Queda (The Fall Guy - 1981/1986) As aventuras de um dublê (Lee Majors)…

4 horas ago

Crítica de “O Dublê”, de David Leitch

O Dublê (The Fall Guy - 2024) O dublê Colt Seavers (Ryan Gosling) volta à…

6 horas ago

10 ótimos filmes que desafiam a sua mente

Se você conseguiu manter sua lucidez nos últimos quatro anos, enxerga claramente o estrago que…

1 dia ago

PÉROLAS que ACABAM de entrar na NETFLIX

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

2 dias ago

Sétima Arte em Cenas – “O Último dos Moicanos”, de Michael Mann

O Último dos Moicanos (The Last of The Mohicans - 1992) No século 18, em…

3 dias ago

“Star Trek Continues” (2013-2017), de Vic Mignogna

Você, como eu, ama a série clássica de "Jornada nas Estrelas"? E, como qualquer pessoa…

4 dias ago