A Dama e o Vagabundo (Lady and the Tramp – 1955)

Sempre lembrada pela adorável cena, ao som de “Bella Notte”, que mostra a dama e o vagabundo compartilhando um fio de spaghetti, poucos contextualizam a obra e reconhecem o quão corajosa foi essa produção para os estúdios de Walt Disney.

Após o fim da guerra, o mundo havia modificado bastante, principalmente o papel da mulher na sociedade americana e no mercado de trabalho. E é possível notar nuances feministas na cena em que os outros cães debocham do pedigree da Dama, fazendo com que a vira-lata Peg parta em sua defesa, da mesma forma que também é perceptível o ranço do preconceito contra asiáticos da época dos projetos de propaganda, nos terríveis gatos siameses, que falam com dificuldade, trocando letras e visando apenas o caos.

É interessante salientar a abordagem de temas espinhosos, levando em consideração o público alvo, como a disputa de classes e as variadas formas de abandono, desde a rejeição com que uma criança pode se identificar ao ver nascer um irmão, até o abandono social dos marginalizados, aqueles que, na alegoria de Disney, não possuem coleira.

A beleza do desenho, com uma trama simples, sem antagonistas fortes ou grandes desafios, realçada pelo widescreen na primeira tentativa do estúdio com o CinemaScope, acaba chamando mais atenção. A opção por nomear os donos simplesmente como Jim querido/querida, além do enquadramento baixo, mostrando a ação pelo ponto de vista dos cães, evidenciam a perspectiva canina e elevam a qualidade de momentos como a perseguição ao rato dentro de casa, no terceiro ato.

A conexão emocional, ponto forte do estúdio, é estabelecida logo na primeira sequência, quando a Dama é dada como presente dentro de uma caixa, exatamente como Walt outrora havia feito com sua esposa. É notório o carinho do criador com esse produto, um veículo para a bela mensagem que é apresentada no início, sobre o amor verdadeiro que representa o abanar da cauda de um cão.

O que acho mais bonito nesse filme é que, diferente de outros clássicos do estúdio, ele nunca apela para o sentimentalismo exagerado, preferindo solucionar conflitos sem diálogos expositivos e piegas. Um exemplo está no desfecho da sequência que mostra a Dama se sentindo ignorada pelos donos, com o nascimento do bebê. Ela rodopia entre os pés deles, ansiosa para descobrir a razão de todo aquele rebuliço em sua casa, até que silenciosamente seu dono a pega no colo e a ajuda a enxergar o bebê dentro do berço. Os dois então acarinham seu pelo, como que para deixar ela segura de que ainda é importante para os dois. Sem exageros, num revés silencioso de muita sensibilidade, o roteiro deixa claro que a cadela se sente responsável pela segurança do bebê.

Disney arriscou tocar em temas muito mais adultos e profundos do que em suas produções anteriores, incluindo até um cão socialista que cita Gorky, um bloodhound com crise existencial após perder o faro, sem falar no protagonista Vagabundo de libertária vida amorosa, que nos remete ao Carlitos de Chaplin, ao lidar com uma figura de autoridade policial. Uma linda animação que sobreviveu muito bem ao árduo teste do tempo.



Viva você também este sonho...

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